por Leandro Saueia

Polaróides da Virada

Apesar do "probleminha" ocorrido no show dos Racionais, não se pode negar que a ideia da Virada Cultural Paulistana é ótimo e deveria ser seguida em outros lugares (especialmente naquelas onde o medo de sair de casa à noite impera). A ideia de poder andar em ruas que costumam ficar desertas depois de um certo horário é excelente e a sensação quase que libertadora. Some a isso a chance de poder assistir a vários shows (muitos deles únicos e de grande valor histórico) e outras atividades culturais de graça e a última coisa que se espera é que atos de vandalismo e violência que, repito, foram setorizados, atrapalhem o evento nos próximos anos.

Sobre os shows, a se lamentar apenas dois problemas do repórter/colunista: ainda não domino a arte de me materializar em dois lugares ao mesmo tempo e nem consigo controlar o meu sono. Por esses motivos acabei perdendo algumas apresentações. Felizmente o que deu pra assistir valeram as horas em pé e filas.

Alceu Valença

Alceu Valença
Alceu Valença Alceu Valença (Foto: Marcelo Ximenez/FI/UOL)
O show que abriu a Virada era bastante esperado já que o pernambucano prometia tocar seu disco de 1977 "Espelho Cristalino" na íntegra. Para quem não sabe, nos anos 70, Alceu Valença foi um dos principais nomes da chamada "invasão nordestina" (numa leva que nos trouxe ainda Belchior, Fagner, Ednardo. Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Elba Ramalho entre outros), ou os "violétricos". Esse pessoal todo praticou fusões interessantíssimas entre a música nordestina tradicional com o rock, criando vários momentos fundamentais dentro de nossa música (discos que as novas gerações fariam por bem descobrir). Como com o passar do tempo essas misturas foram ficando cada vez mais ralas, é provável que muita gente não tivesse conhecimento desse lado mais rock de Alceu Valença.

Às 18 horas em ponto Valença subiu ao palco e a formação da banda de apoio mostrava qual ia ser a da noite: guitarra, baixo, bateria, percussão e sanfona. Mesmo tocando músicas pouco conhecidas na primeira parte, o público entrou no clima e tanto a senhora de idade quanto os hippies, os metaleiros e a garota com camiseta dos Kinks dançaram bastante. Depois de ter tocado seis das oito canções do Espelho Cristalino (com destaque para Agalopado e a própria faixa título), o cantor emendou uma sessão de sucessos, tanto seus (Anunciação, Como dois Animais) quanto de outros (Táxi Lunar de Geraldo Azevedo e o Xote das Meninas de Luiz Gonzaga). Morena Tropicana ficou obviamente pro fim, e antes de se despedir o cantor lembrou que ali na mesma Praça da Sé ele participou do Comício pelas Diretas num já longínquo janeiro 1984.

João Donato

João Donato
João Donato João Donato (Foto: Anna Carolina Negri/FI/UOL)
Depois de uma hora de rock nordestino, a próxima parada seria no Teatro Municipal onde João Donato apresentaria seu disco "A Bad Donato". João Donato, que está na estrada desde o fim dos anos 40, e foi um dos nomes fundamentais da bossa-nova, gravou esse disco em 1970. Apesar de ter vendido pouco na época, com o passar dos anos a sua mistura de funk, jazz, rock e música brasileira acabou conquistando todo um novo público.
João chegou no palco com um casaco de capuz e chinelo (mantendo assim a fama de excêntrico que o acompanha), e brincou que estava fantasiado de Rocky Balboa. Mas tão logo começou a dedilhar o seu piano deixou claro que de maluco ele não tinha nada. Ao lado de uma banda de apoio que incluía o trombonista Bocato, Robertinho Silva na bateria e seu próprio filho Donatinho nos teclados (que para alguns exagerou nas suas performances), João usou A Bad Donato como pretexto para fazer um um show de jazz-funk-samba com muitos improvisos e solos. No final ele ainda arriscou cantar o hit "Bananeira" - com direito a coro da plateia - e pegou o teclado portátil do filho (aqueles em forma de guitarra que andavam sumidos desde os anos 80) e saiu fazendo solos e dançando todo feliz pelo palco. Com quase 75 anos Donato mostrou porque ainda é um de nossos músicos mais talentosos e respeitados e fez muita gente deixar o teatro com a sensação de terem presenciado um evento histórico. Torçam para que ele se anime a faça mais apresentações em cima desse disco.

Clube do Balanço com Erasmo Carlos

Erasmo Carlos
Erasmo Carlos (Foto: Mastrangelo Reino/FI/UOL)
Como bem lembrou um amigo jornalista: "só em São Paulo para um evento desses reservar em seu horário nobre um show de samba-rock". Faz sentido, o samba-rock é a cara de São Paulo (apesar da grande maioria de seus expoentes serem cariocas) e o Clube do Balanço foi um dos nomes que mais ajudou a tirar o gênero do gueto ao qual ele estava restrito há anos. A banda encabeçada por Marco Mattoli se especializou em resgatar a obra de caras esquecidos como Bebeto ou Marku Ribas ou músicas pouco conhecidas de gente mais famosa como Jorge Ben (o grande precursor) e do próprio Erasmo Carlos. Na primeira parte o grupo tocou vários hits do gênero e só não pôs o povo pra dançar coladinho porque a concentração humana era grande demais para isso. Depois de uns 40 minutos de show, Matolli chamou ao palco Erasmo Carlos (e não, ele não o apresentou como: "o meu amigo..." se você se está se perguntando) que entrou todo feliz ao som de ?Coqueiro Verde?. Ainda rolaram clássicos como "O Comilão", "Mané João" e "Estou dez anos atrasado", todas compostas entre o fim dos anos 60 e início dos 70, época de ótimos discos como Sonhos e Memórias. Apesar da ausência da esperada "De Noite na cama", a noite valeu pelo final com Além do Horizonte ("a música mais positiva já escrita" como ele a apresentou) com todo mundo mandando ver no "lalalala". Pouco antes o Tremendão se mostrou emocionado com o evento e disse que "utopicamente esperava que todas as pessoas que estavam pensando em cometer algum ato de violência naquele dia, pudessem desistir de suas intenções ao verem aquela grande festa". Pelo que se viu mais tarde, Erasmo Carlos mandou seu recado mas quem deveria ter ouvido não o escutou...

Língua de Trapo

Língua de Trapo
Língua de Trapo Língua de Trapo (Foto: Divulgação)
A noite reservava pelo menos mais um show digno de ser conferido: o de Jards Macalé que iria executar seu disco de estréia acompanhado de Lanny Gordin, um dos nossos maiores guitar-heroes (para muitos o maior). Infelizmente a fila estava grande, o sono apertava e com pesar tive que abandonar o plano. Ou seja, quando a confusão na praça da Sé começou eu já estava há algumas horas em outro lugar. Por isso não tenho como dar uma versão dos fatos ou apontar culpados. Mas que o atraso enorme para o início do show dos Racionais deve ter contribuído bastante não se pode negar. É claro que todo fã do grupo de rap paulistano já sabe que você nunca chega a um show do grupo na hora certa , mas num evento que estava sendo marcado pela pontualidade, deixar o pessoal esperando por várias horas com certeza não foi a melhor das atitudes.
Durante o domingo outros bons shows estavam agendados (Pato Fu, os veteranos punks do Cólera e Garotos Podres e o escatológico Rogério Skylab). Consegui ver um pouquinho dos Garotos Podres (e cantar baixinho ?anarquia oi oi?), mas estava mais curioso para ver o Língua de Trapo cantando as músicas de seu primeiro disco. Pra quem não entendeu a escolha, acho bom explicar que o Língua de Trapo fez um dos primeiros shows que vi na vida e que as músicas de seus dois primeiros discos estão na minha cabeça há mais de vinte anos. Daí as minhas dúvidas em saber se aquelas canções falando em brigas entre engajados e alienados, a perda de cultura dos índios ou exilados políticos ainda faziam sentido (afinal elas foram lançadas em 82, quando Lula, personagem principal do antológico Xote Bandeiroso, sequer podia imaginar o que o futuro lhe reservava). É claro que para a platéia mais jovem essas referências todas devem ter se perdido e hoje em dia fica difícil imaginar o surgimento de um grupo tão eclético (ou alguém aí conhece outro grupo que que tenha lançado um disco com: jovem guarda, reggae, chorinho, discoteca, xote, heavy metal a la Black Sabbath, música italiana, toada caipira, bolero e tango?) o Língua de Trapo divertiu especialmente o pessoal que curtia o grupo ainda nos tempos de Teatro Lira Paulistana que cantou e participou ativamente nos clássicos do grupo como Xingu e Concheta. De quebra ainda tocaram duas músicas novas onde mostraram que continuam divertidos e sem a menor correção política (o que dizer de um grupo que canta "Sou Viado Sim" puxando coro da ala masculina da plateia ou que fala que não conseguiu pegar a Xuxa mas que fez um filho que vai pegar a Sasha?).

Depois dessa me dei por satisfeito e voltei pra casa, esperando que esse formato seja mantido no ano que vem. E se sonhar não custa nada que tal shows com o Ira! tocando Psicoacústica, Belchior fazendo Alucinação, Arnaldo Baptista Loki? Ou Milton nascimento e Lô Borges recriando o Clube da Esquina? Fica aí a sugestão para a a organização.