Quando chega domingo Faço tenção de todas as coisas mais belas Que um homem pode fazer na vida
Há quem vá para o pé das águas Deitar-se na areia e não pensar E há os que vão para o campo Cheios de grandes sentimentos bucólicos Porque leram, de véspera, no boletim do jornal "bom tempo para amanhã" Mas uma maioria sai para as ruas pedindo Pois nesse dia Aqueles que passeiam com a mulher e os filhos São mais generosos Um rapaz que era pintor Não disse nada a ninguém E escolheu o domingo para se matar Ainda hoje a família e os amigos Andam pensando porque seria Só não relacionam que se matou num domingo! Mariazinha Santos (aquela que um dia se quis entregar Que era o que a família desejava Para que o seu futuro ficasse resolvido) Mariazinha Santos Quando chega domingo Vai com uma amiga para o cinema Deixa que lhe apalpem as coxas E abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe Bordou, quando ela era ainda muito menina Para eu contar isto É que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo! À hora negra das noites frias e longas Sei duma hora numa escada Onde uma velha põe a sua neta E vem sorrir aos homens que passam! E a costureirinha mais honesta que eu namorei Vendeu a virgindade num domingo ? porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto Que em toda a História das Guerras
Partindo deste princípio Que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer Eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo E esta era uma das coisas mais belas Que um homem podia fazer na vida!
Então Todas as raparigas amariam no tempo próprio E tudo seria natural Sem mendigos nas ruas nem casas de penhores
Penso isto, e vou a grandes passadas E um domingo parei numa praça E pus-me a gritar o que sentia Mas todos acharam estranhos os meus modos E estranha a minha voz Mariazinha Santos foi para o cinema E outras menearam as ancas ? ao sol Como num ritual consagrado a um Deus! Até chegar o homem bem-amado entre todos Com uma nota de cem na mão estendida
Venha a miséria maior que todas Secar o último restolho de moral que em mim resta E eu fique rude como o deserto E agreste como o recorte das altas serras Venha a ânsia do peito para os braços!
E vou a grandes passadas Como um louco maior que a sua loucura O rapaz que era pintor Aconchegou-se sobre a linha férrea Para que a morte o desfigurasse E o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica De revolta contra o mundo Mas como o rosto lhe estava intacto Vai a família ao necrotério e ficou aterrada! Conheci-o numa noite de bebedeira E acho tudo aquilo natural A costureirinha que eu namorei Deixava-se ir para as ruas escuras Sem nenhum receio Uma vez que chovia até entrámos numa escada Somente sequer um beijo trocámos E isto porque no momento próprio Olhava para mim com um propósito tão sereno Que eu, que dela só desejava o corpo bom feito Me punha a observar o outro aspecto do seu rosto Que era aquela serenidade De pessoa que tem a vida cheia e inteira No entanto, ela nunca pôs obstáculo Que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas Hoje encontramo-nos aí pelos cafés (ela está sempre com sujeitos decentes) E quando nos fitamos nos olhos Bem lá no fundo dos olhos Eu que sou homem nascido Para fazer as coisas mais heróicas da vida Viro a cabeça para o lado e digo ? rapaz, traz-me um café O meu amigo, que era pintor Contou-me numa noite de bebedeira ? Olha Quando chega domingo Não há nada melhor que ir para o futebol E como os olhos se me enevoassem de água Continuou com uma voz Que deve ser igual à que se ouve nos sonhos ? ... no entanto, conheço um homem Que ia para a beira do rio E passava um dia inteirinho de domingo Segurando uma cana donde caia um fio para a água um dia pescou um peixe E nunca mais lá voltou O pior é pensar Que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre Como se fosse uma festa? O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara Tão rara e certa e maravilhosa Que deslumbrado se matou
Pago o café e saio a grandes passadas Hoje e depois e todos os dias que vierem Amo a vida mais e mais Que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
Mariazinha Santos Que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos Que parem ao sol E joguem um tostão na mão dos pedintes E a menina das horas longas e frias Continue pela mão de sua avó E tu, que só andas com cavalheiros decentes Ó costureirinha honesta que eu namorei um dia Fita-me bem no fundo dos olhos Fita-me bem no fundo dos olhos!
Então Virá a miséria maior que todas Secar o último restolho de moral que em mim resta E eu ficarei rude como o deserto E agreste como o recorte das altas serras E virá a ânsia do peito para os braços!
Domingo que vem Eu vou fazer as coisas mais belas Que um homem pode fazer na vida!